Capítulos 2 e 3

Capítulo 2

Ainda Continuo Péssimo Em Fazer Amizades

 Acordei com o típico som da discussão das minhas irmãs. Provavelmente Zoey estava no banheiro há tempo demais e Clair já havia cansado de espera-la sair, então ela esmurrava a porta e gritava para Zoey, que respondia igualmente com gritos raivosos. E ainda havia pessoas que reclamavam por ter de acordar com o barulho do despertador. Quem dera que eu pudesse acordar com esse barulho.
 Levantei e me vesti rapidamente. O sol já havia nascido e o dia estava um pouco nublado, com nuvens negras que ameaçavam despejar água a qualquer momento. Saí no corredor e o motivo da discussão já era o que eu esperava. Quando Clair me viu, apenas virou o rosto e derrubou sua escova de cabelo que quicou no chão e caiu há alguns passos da porta.
 Assim que ela saiu dali para pegar a escova, Zoey abriu a porta do banheiro e eu me esgueirei rapidamente para dentro trancando a porta atrás de mim. Do outro lado, Clair começou a me xingar de todos os palavrões que conhecia e a esmurrar a porta ferozmente.
 O banheiro estava infestado pelo vapor. O espelho estava nublado e o limpei com a manga da minha blusa. Apenas tentei arrumar um pouco meu cabelo, mas ele era tão rebelde que mesmo se passasse o dia todo tentando arruma-lo, não conseguiria. Então desisti depois do primeiro minuto, apenas o desembaraçando um pouco. Escovei os dentes e lavei o rosto, o que foi relativamente rápido, e logo sai do banheiro. Quando passei por Clair, ela me bateu com sua escova de cabelo e bateu a porta atrás de si.
 Desci as escadas, e na cozinha não havia ninguém. Então peguei alguns biscoitos que serviriam para meu lanche, já que odiava a comida da escola, e peguei mais alguns para comer naquele momento. Enquanto mastigava o primeiro biscoito, peguei minha mochila e sai de casa. Quando cheguei ao meio do caminho de casa até a pista, o ônibus amarelo parou e eu subi. Alguns minutos depois, Mary também o fez.
 Suas bochechas estavam vermelhas e ela arfava, provavelmente havia saído correndo de casa quando percebera que o ônibus chegara. Seus cabelos negros caiam em cachos grossos pelo seu rosto e ela usava a mesma roupa do dia anterior, exceto que agora sua blusa era vermelha como o pôr-do-sol, enquanto a outra havia sido azul.
 Ela caminhou pelo ônibus e veio se sentar ao meu lado. Eu realmente odiava quando as pessoas tentavam falar comigo. Já desistira de fazer amigos há muito tempo. O ônibus se pôs em movimento, e em pouco tempo eu já podia ver as colinas e as pastagens verdes, correndo por nós como se houvessem criado pernas e decido que correriam um pouco.
 - Olá. - Mary disse feliz.
 - Oi. - respondi monotonamente.
 - Espero que não chova hoje. - ela comentou mais para si do que para mim.
 Apenas a olhei mais uma vez e depois desviei o olhar para a janela. A paisagem continuava a mesma. Seria quase idêntica se às vezes algumas árvores não mudassem de lugar ou uns e outros animaizinhos aparecessem correndo.
 Mary não disse mais nada durante todo o trajeto, e me perguntei se ela já teria desistido de fazer amizade comigo. Provavelmente sim. Até eu me achava uma pessoa chata às vezes. O trajeto pareceu passar um pouco mais rápido do que o normal, e cada vez que nos aproximávamos mais da escola o tempo parecia se fechar mais e as nuvens pareciam se tornar mais negras. Até parecia que havia algo de maligno agindo naquele lugar. Talvez tivesse mesmo. Eu odiava ter uma imaginação fértil demais.
 Assim que a escola se aproximou, percebi com alegria que meus perseguidores não estavam ali, a minha espera. Talvez eles tivessem decidido faltar hoje. Apesar de serem tão burros como portas, não perdiam um dia de aula se quer.
 Assim que pus o pé para fora do ônibus, o sinal soou e todos que andavam tranquilamente pelo gramado ou pelo pátio, se puseram a andar em direção a suas aulas. Fiz o mesmo. Hoje minha primeira aula seria de história. Eu gostava de história, e talvez até estudássemos a civilização grega, e com ela seus deuses. Talvez essas fossem uma das minhas civilizações preferidas. Realmente preferia ser um semideus nesse momento e ter uma caneta que se transformava em espada, do que ser um simples garoto sem amigos vivendo dentro de sua própria armadilha. Mas ninguém tinha tudo o que queria.
 Subi aquelas malditas escadas, e chegando ao terceiro andar, entrei na primeira porta a direita. Rumei para uma carteira no fundo da sala. Apesar de gostar da aula, eu não gostava de sentar na frente. O professor já estava na sala.
 Ele era um homem alto. Nem magro e nem gordo, seus cabelos eram brancos prateados e um bigode igualmente branco. Ele deveria ter seus bons sessenta anos e seus olhos eram castanhos como folhas no outono, por baixo dos óculos. Trajava uma camisa social amarela claro com calças sociais caqui e um sapato de couro marrom escuro.
 Sua expressão era sempre calma e serena, e ele era tão divertido quanto parecia, mas irritado era pior do que dez dinamites sendo explodidas ao mesmo tempo. Ele sempre demonstrava muito menos do que sabia, e apesar de a maioria das pessoas não perceberem, ele sempre dizia muito menos do que pensava. E amava a história como amava a própria mulher. Talvez até mais, brincara ele uma vez.
 Assim que todos entraram na sala, ele se levantou e começou a dar a aula. Sua voz era grossa e alta e ele tinha um sotaque que me lembrava o vocalista de alguma banda de rock. Vezes ou outra ele dizia uma palavra um pouco mais alto do que o necessário e sua voz ecoava forte e poderosa pela sala. A aula, infelizmente, não era sobre a Grécia, mas felizmente sobre o Egito. Eu adorava os egípcios tanto quanto adorava os gregos. Tudo era tão fascinante que me perdia em suas aulas, imaginando como deveria ser naquela época, ou mesmo como viver com os deuses antigos, como acontecia em muitos dos livros que lia. Abençoados fossem quem os escreviam.
 O tempo escorreu tão rápido como água entre os dedos. Em pouco tempo o sinal soou e rumei para minha próxima aula, mas essa, infelizmente, não passou tão rápido. Afinal, ela nunca passaria. Esse era um dos motivos por eu odiar matemática, mas pelo menos meu professor era legal, na medida do possível.
 Depois de mais algumas aulas, o abençoado sinal do almoço tocou. Sai do prédio e rumei para aquele mesmo lugar de sempre, perto do parquinho. Sentei-me e comecei a comer meus biscoitos tranquilamente. Minutos depois, Mary apareceu comendo um sanduíche. Ela se sentou ao meu lado e encarou seu lanche durante algum tempo, depois se virou para mim. Ela não havia desistido de me irritar.
 - Também não gosta da comida daqui? - perguntei a olhando.
 - Não sei. Não a provei ainda. Minha mãe prefere que eu coma alguma coisa de casa, ela diz que a maioria da comida servida nas escolas tem muitos conservantes e mesmos as frutas e verduras tem muito agrotóxicos. Ela é contra tudo isso.
 - Interessante. - observei mastigando meu biscoito lentamente.
 - Você não cansa de ficar sem falar durante tanto tempo?
 - Não.
 - Eu ficaria cansada, sou o tipo de pessoa que fala muito sabe...
 Mary continuou a falar e tentei prestar atenção no que ela falava. Juro que tentei, mas meus pensamentos voaram para longe. Eu me lembrava frequentemente sobre histórias que lera. Identificava-me com a maioria delas, quer dizer, até a parte que coisas legais aconteciam.
 Era igual a do garoto solitário criado pelos tios, já que os pais haviam sido mortos por um bruxo muito ruim. Identificava-me com o garoto, sempre perseguido por garotos burros e sempre sem amigos, mas quando chegava a hora que ele descobria a verdade e ia para uma escola de bruxaria eu não me identificava mais com ele, pois coisas boas como aquelas jamais pareciam acontecer. Sempre ficava na parte do sozinho e incomodado por outros garotos.
 - Então, vê se eu não tenho razão? - Mary perguntou por fim, e meus pensamentos voltaram para a terra firme.
 Apenas concordei com um gesto. Aprendera que quando as pessoas falavam algo e você não havia prestado atenção, a melhor opção era concordar. Sempre concorde, que as coisas provavelmente dariam certo.
 Um menino e uma menina passaram aos risos perto de nós, e alguns metros depois pararam, se sentando do outro lado do parquinho, se beijando. Apenas os olhei rapidamente e voltei para meus próprios pensamentos. O amor era uma coisa um pouco inútil em minha opinião. No final tudo sempre acabaria em lágrimas mesmo. Não importava o que acontecesse, tudo sempre acabaria em lágrimas e dor.
 Mas Mary não parecia achar isso. Ela encarou o casal de namorados por um longo tempo, seus olhos pareciam estar mais longes do que os meus. Ela parecia estar se lembrando de algo ou até mesmo imaginado alguma cena. Então ela pareceu voltar a si rapidamente e deu um fraco sorriso cansado.
 - O amor é lindo, você não acha? - ela perguntou suspirando.
 - Não.
 - Você nunca sentiu borboletas no seu estômago quando estava apaixonado por acaso?
 - Sim, mas o ácido do meu estômago as matou.
 Mary apenas balançou a cabeça negativamente. Não havia sido uma pessoa muito poética nos últimos tempos, as coisas haviam sido mais práticas e no meu vocabulário, e coisas como aquelas do sentir "borboletas no estômago" não existiam mais. Isso também se aplicava a aquela famosa frase: "Te amo do fundo do meu coração", isso era impossível já que o coração não ama nem odeia, ele só bombeia.
 Ela continuou a falar e fiquei realmente chateado por não conseguir prestar atenção no que ela falava. Não tinha amigos e nem tinha conversas muito longas com outras pessoas, talvez já tivesse me esquecido de como era ouvir e ser ouvido. Meus pensamentos voaram novamente para as histórias que lera, e os desenhos que desenhara e me lembrei de que havia deixado meu caderno de desenhos em cima da cama. Pedi para que ninguém mexesse nele. Odiava quando outras pessoas viam o que eu desenhava.
 O sinal do fim do almoço soou rapidamente e voltei para minha sala, onde agora, teria outra aula de história. Dessa vez o professor falava algo sobre a idade media e sobre os feudos. Eu ficava surpreso como ele conseguia mudar de uma matéria para outra, tão rápido e depois voltar nela. Talvez aquela fosse uma tática para não deixar as aulas tão cansativas.
 Enquanto ele falava, comecei a imaginar como seria viver naquela época. Sem energia elétrica, sem objetos eletrônicos ou qualquer coisa que tínhamos hoje. E o que mais me admirava, era que essas pessoas conseguiam viver felizes sem tudo aquilo, pelo menos a maioria, por assim dizer.
 Imaginei-me segurando uma espada e indo lutar ao lado de grandes cavaleiros, ou governando um grande reino, cercado por súditos e empregados. Eu gostava de tudo aquilo, na verdade aquelas coisas eram a minha vida, sem tudo aquilo talvez eu não tivesse aguentado viver sem amigos, ou algo do tipo, por tanto tempo. O mundo da fantasia era a minha salvação, e apesar de estar consciente de que tudo aquilo não aconteceria, infelizmente, como nas histórias que lia e etc. Continuava gostando daquele mundo onde não era um excluído.
 Minhas últimas aulas foram de história também, e quando o sinal tocou, apenas peguei minhas coisas e sai dali. No caminho encontrei meus fãs e acabei com um soco no estômago e algumas folhas do caderno rasgadas, nada de muita novidade, infelizmente aquilo já era quase uma rotina, apesar de odiá-la.
 Mary se sentou novamente ao meu lado no ônibus, perguntou se eu estava bem, e porque não batera neles. Apenas a olhei e respondi que não valia a pena, seria covardia bater em garotos com maturidade de crianças de colo, me sentiria mal batendo em uma criança se o fizesse. A dor era uma coisa passageira, em pouco tempo passaria e eu ainda arranjaria um jeito melhor de me vingar sem que me envolvesse em uma briga e acabasse expulso, a última coisa que gostaria que acontecesse.
 Encarei os campos verdes durante todo o caminho e quando chegamos, apenas desci do ônibus e fui para casa me despedindo de Mary. Sentia-me mal por não ter escutado o que ela falara.
 Assim que entrei na cozinha, começou a chover. O vento uivava e ventava muito. Não demorei em perceber que estava sozinho em casa. Meu pai estava trabalhando, minha mãe havia deixado um bilhete que fora levar Eric no médico por causa de uma gripe e hoje era um dos dias em que minhas irmãs tinham aula de religião a tarde, menos Zoey, que dava algumas dessas aulas.
 Fiz um sanduíche e subi as escadas para meu quarto. Chegando lá, joguei a mochila no chão e tirei os sapatos. Então peguei meu caderno de desenhos e voltei a desenhar. A chuva batia na minha janela e os pingos que se acumulavam ali, pareciam estar apostando corrida uns com os outros. Da janela pude ver a casa de Mary. A chuva batia nas tábuas que estavam amontoadas em um lado do gramado e pingavam no chão. O bosque mais ao lado estava silencioso e calmo, como sempre. Ele me dava certos calafrios algumas vezes, parecia silencioso demais, misterioso demais. Perguntei-me se talvez parecesse assim às vezes.
 Ouvi o ranger de alguma porta no primeiro andar, mas provavelmente havia sido o vento que batera, e ela abrira um pouco. Voltei à atenção para meu desenho e descobri que estava desenhando uma espada. Na maioria das vezes que começava a desenhar, me perdia em pensamentos e não me dava conta do que estava fazendo até ver o desenho quase pronto. Era estranho, mas gostava que meu subconsciente se encarregasse daquela tarefa, às vezes.
 A lâmina era grande com uma espécie de divisão no meio, e seu cabo era cravado de pedras preciosas. Tinha de pintar o desenho para lhe dar mais vida, mas tinha preguiça de o fazer.  E, talvez, deixar o desenho preto e branco me dava um pouco mais de conforto, era como se me identificasse com aquelas cores.
 Dei uma última mordida no meu sanduíche e depois limpei a mão na calça. No andar de baixo pude ouvir o barulho de pequenos sinos tocando, provavelmente eram os sinos que minha mãe colocava na varanda de enfeite e quando a brisa batia, eles batiam uns nos outros provocando sons de diferentes timbres.
 Vi uma sombra se mover atrás de uma janela na casa de Mary, que logo desapareceu. Olhei novamente para o céu e tive a infeliz impressão de que choveria durante mais algum bom tempo. Ouvi o som da porta ranger novamente, mas não me levantei para ir ver o que era, pois tinha quase certeza que era o tempo, apesar de minha imaginação fértil imaginar que eu estava sendo vigiado ou atacado por inimigos.

 Apenas ri com aquela ideia e me perguntei quando pararia de achar que tudo que acontecia tinha um significado sobrenatural ou mágico, e obtive uma resposta quase instantaneamente, talvez nunca.



                                                Capítulo 3

Acidentalmente Começo a Fazer Exercícios e Vou Parar Em Outro Mundo

 Desci do ônibus e comecei a caminhar em direção ao bosque. Não estava com muito ânimo para ir para casa. Hoje havia trazido minha prancheta de desenhos, e ainda tinha alguns biscoitos que haviam sobrado.
 - Aonde você vai? - ouvi Mary perguntar.
 Parei de andar e me virei para ela.
 - Lugar nenhum.
 - Posso ir a "lugar nenhum" com você?
 - Você não vai gostar.
 - Isso é apenas uma forma de dizer não.
 - Se você entende assim...
 - Sim, entendo, mas vou mesmo assim.
 Ela correu até mim. Mary estava tentando fazer amizade comigo já fazia quase uma semana. E acabara de chegar à conclusão que era melhor dar a ela uma chance, antes que ela me enlouquecesse. Talvez aquela garota fosse legal, talvez conseguisse ter uma amiga para variar. Talvez.
 - Vamos apostar uma corrida? - ela perguntou e jogou a mochila no chão.
 - Ah não...
 - O que foi? Está com medo de perder para uma garota?
 - Não, não é isso. É só que... - e antes que pudesse terminar de falar, ela disparou na minha frente para dentro do bosque.
 Joguei minha mochila no chão e disparei atrás dela, mas não porque queria apostar uma corrida, e sim porque tinha de pará-la antes que se perdesse. O bosque era um lugar cheio de caminhos perigosos que podiam ter levar para muito longe de casa em um piscar de olhos, e às vezes nunca mais te trazer de volta.
 - Mary, pare! – gritei, correndo atrás dela. Mas Mary parecia achar que eu só a mandava parar porque queria ganhar a corrida.
 Nós entrávamos cada vez mais fundo no bosque. A trilha que tínhamos feito para vir já estava se apagando. A cada metro que corríamos mais para dentro, a vegetação ficava mais densa e perigosa.
 Tentei correr o mais rápido que pude até que consegui correr ao seu lado. Seus cachos negros balançavam de um lado para o outro. Mary não corria como uma pessoa normal, ela parecia uma bailarina correndo nas pontas dos pés, o que eu percebi que era uma tática que ela usava para conseguir correr mais rápido.
 - Mary, pare, nós vamos nos perder! - gritei olhando para ela e voltando a atenção para o caminho a minha frente.
 - Aposto que é apenas um truque pra você ganhar a corrida! - ela disse, rindo.
 - Ah, sua tola! - rosnei e me joguei em cima dela.
 Nós caímos no chão e rolamos alguns metros, até pararmos aos pés de uma árvore fina e comprida. Minhas roupas estavam cheias de folhas, assim como o meu cabelo. E tinha a péssima sensação de ter batido a cabeça em algum lugar.
 - Você ficou doido por acaso? - ela vociferou saindo de cima de mim e se sentando no chão.
 - Eu pedi para você parar. Esse bosque é traiçoeiro, é fácil entrar, mas difícil de sair. Poderíamos ter nos perdido, se é que não nos perdemos.
 - Por que você não disse isso antes?!
 - Eu tentei, mas você não ouviu!
Mary começou a tirar as folhas do seu cabelo e percebi que havia um corte em sua bochecha, que sangrava um pouco.
 - Você está bem? - perguntei me aproximando.
 - Sim, não foi nada.
 Aproximei-me dela, e com a manga da minha blusa limpei um pouco do sangue em volta da sua bochecha, depois me levantei e a ajudei a levantar.
 - Por onde nós viemos?
 - Por ali. - disse e apontei para a árvore um pouco atrás.
 - Eu jurava que nós tínhamos vindo pela outra direção.
 - Bem, vamos tentar voltar então, antes que comece a ficar tarde.
 Nós andamos, andamos e andamos. E aonde quer que fôssemos, sempre voltávamos para o mesmo lugar, isso se não entrávamos mais e mais no bosque. Às vezes tínhamos a sensação de conseguir achar o caminho de volta, pois a vegetação se tornava menos densa, mas logo depois nossa alegria se acabava, pois a vegetação se tornava mais densa do que antes.
 Às vezes eu tinha a sensação de que estávamos sendo observados. Ouvira histórias sobre aquele bosque desde criança. E todas diziam que ele era tão velho quando o próprio homem. Minha mãe me contava que ali existiam criaturas que não pertenciam a esse mundo e que tinham acidentalmente vindo parar aqui, e nunca mais haviam conseguido achar o caminho de volta para casa.
 Eu nunca acreditara muito nessas histórias, mas agora elas voltavam à minha mente, tão claras que pensava que talvez pudessem ser reais. Caminhamos durante horas, e sempre que tínhamos esperança de voltar, era como se a floresta nos desse mais e mais pistas falsas e nos atraísse direto para o seu coração. Às vezes via algumas sombras pelo canto do olho, mas quando me virava para olhar, não havia nada. Às vezes ouvia barulhos estranhos, como se grandes articulações estivessem se estralando.
 As árvores eram, em sua maioria, altas com troncos grossos, e na maioria deles havia pequenas placas brancas e verdes, de líquens e musgos. Suas folhas eram grandes e verdes, suas cascas eram fortes e resistentes e elas pareciam velhas. Jurava que se pudessem falar, contariam histórias sobre muitos, e muitos anos atrás, onde tudo ainda era silêncio e paz.
 Mary não parecia estar com medo, mas podia ver a preocupação em seus olhos. Vezes ou outra ela limpava seu corte, mais por nervosismo do que qualquer outra coisa. Minhas pernas já doíam e eu sentia que precisava descansar antes de continuar. Já havíamos andado muitos quilômetros e a única coisa que conseguia pensar era em quão longe estávamos de casa.
 Parei um pouco e me sentei no chão, então jurei ouvir sussurros, os quais me deram calafrios. Eram sussurros cheios de ódio e rancor, podia sentir o ódio neles. Era toda a raiva de muitos e muitos anos. Era como se eles contassem velhas histórias sobre coisas malignas, sobre um mundo cheio de dor e sofrimento, um mundo onde só restava dor e medo. Mary olhou para mim assustada.
 - Você ouviu isso?
 - Sim.
 - Matt, você já esteve aqui antes?
 - Não, nunca entrei tão fundo no bosque.
 Então ouvi o barulho de algo se quebrando um pouco atrás de mim. Era um barulho semelhante a uma pessoa pisando em vários gravetos secos e velhos de uma vez. Levantei e comecei a olhar em volta. Não havia nada. Talvez o que tenha feito aquilo não quisesse ser visto. O barulho se repetiu, mas dessa vez ele parecia estar mais próximo de nós, à minha direita. Mary agarrou meu pulso e senti que se ela não parasse de apertá-lo, minha mão ficaria sem circulação.
 - Corra. - disse para ela sem som.
 Mary balançou a cabeça e de repente saiu em uma corrida sem rumo, me arrastando com ela. Corremos sem nem pensar por onde estávamos indo. Tinha a impressão de estar mais próximo do coração do bosque do que nunca. Meu sangue rugia em meus ouvidos. Minhas pernas pareciam saber o que fazer. Quer dizer, pelo menos elas sabiam, já que eu estava perdido.
 Nós corremos, e corremos sem pensar nas consequências. Nossa prioridade agora era despistar aquela coisa. A única coisa que via na minha frente eram os cachos de Mary se agitando. Já estava cansado demais para continuar e percebi que ela também. Foi quando ouvi o barulho do rio correndo por ali.
 - Mary, o rio... Siga-me. - disse arfando.
 Virei para direita e comecei a correr até o barulho. Talvez do outro lado do rio tivesse alguma plantação ou casas, mas também poderia ter mais uma grande parte do bosque, e para quem já estava perdido, se perder um pouco mais não faria mal.
 A vegetação começou a ficar menos densa e as árvores se tornaram altas com troncos finos. Elas pareciam ser muito novas comparadas às outras que havíamos encontrado antes. O barulho do rio aumentava mais e mais, e eu sentia uma sensação confortável que me acalmava. Era como se todas as minhas lembranças ruins, todos os meus medos, tudo estivesse indo embora junto com o rio.
 Do meio das árvores pude avistá-lo. Ele estava apenas a alguns metros de nós, e talvez foi isso que me deu força para correr mais um pouco. Quando chegamos à margem, desabei e Mary caiu ao meu lado. Ela arfava e suas bochechas estavam vermelhas.
 - Você acha que despistamos aquilo? - ela perguntou limpando o suor da testa.
 - Não sei, acho que sim... Mas vamos descansar apenas um pouco. Só temos aproximadamente uma hora antes do anoitecer.
 - Como você sabe disso?
 - É só olhar para o sol, ele já está quase se pondo no horizonte.
 - Matt, você já reparou nesse lugar? - Mary parecia admirada e espantada ao mesmo tempo.
 Olhei em volta e fiquei muito surpreso com o que vi. O rio corria cristalino e limpo por cima de pedras brancas e marrons. As pedras povoavam até as margens do rio, onde não corria mais água. A margem era coberta por folhas secas que tinham uma coloração que ia desde o vermelho até o marrom escuro. E um pouco a minha direita, havia uma ponte.
 Ela parecia estar abandonada há anos. Era feita de uma madeira escura, que parecia muito resistente. Seus apoios do lado eram feito de galhos finos entrelaçados e cobertos por flores mortas, que deveriam ter sido muito bonitas quando vivas. Exatamente no meio da ponte, havia um arco entrelaçado de plantas das mais variadas espécies, e no meio desse arco, havia um brasão, que antes deveria ter sido de um dourado como ouro. Havia algumas coisas escritas nele, mas elas estavam cobertas por flores mortas que haviam se enroscado ali e morrido.
 O outro lado que me impressionava bastante, pois parecia ser a cópia exata da margem em que estávamos, só que esta parecia estar um pouco sem vida. Era como se estivesse abandonada há longos anos, mas não abandonada pelas criaturas vivas, mas sim pelo sol. Ela parecia escura demais, triste demais.
 Na frente da ponte, do nosso lado da margem, havia uma placa apontando para ponte. Era de madeira escura e resistente e a escrita estava coberta por flores mortas. Tinha uma aparência velha e importante, como se o destino do mundo estivesse escrito ali.
 O sol já adquiria seu tom alaranjado, que havia sido refletido em toda a vegetação, a deixando com um tom vivo de laranja. Não havia nuvens no céu, apenas o laranja e a imensidão de algo que parecia nunca acabar.
 - Incrível... - foi apenas o que consegui dizer.
 - Estou faminta e cansada.
 - Beba um pouco de água, não podemos ficar aqui muito tempo, precisamos tentar encontrar o caminho de casa. Vamos seguir o rio, talvez ele nos leve para um lugar que tenha civilização.
 Mary se levantou e caminhou até o rio, e fiz o mesmo. Ajoelhamos na beirada, e levei as mãos em concha, consegui pegar um pouco de água. Ela era fresca, e cristalina como vidro. Bebi um pouco e foi como se todo o meu cansaço, a dor, o desespero, o medo e todas as sensações ruins que um humano poderia ter, houvessem ido embora. Aquela água me encheu de esperança e coragem. Sentia-me invencível. Era como se todo o poder do mundo tivesse vindo para minhas mãos, mas a única coisa que conseguia pensar era que não queria todo o poder do mundo, apenas voltar para casa em segurança e levar Mary comigo.
 Depois de mais alguns goles, me senti realmente muito bem e satisfeito, como se tivesse tido uma boa noite de sono e um ótimo café da manhã. Eu poderia fazer o que tivesse de fazer, enfrentaria o que tivesse de enfrentar, pois estava descansado e era isso o que importava.
 Joguei um pouco de água no meu rosto e senti o líquido refrescar minha pele. Tive vontade de entrar completamente no rio, para que essa sensação se tornasse mais forte, mas sabia que aquilo era errado, mesmo o rio parecendo ser raso e ter a impressão de que se entrasse nele, ele não chegaria se quer aos meus joelhos, senti que aquela não era a coisa certa a se fazer.
 Levantei e ajudei Mary a se levantar. Uma coisa assustadora que reparei, foi que seu corte havia sumido, mas não falei nada, não queria deixa-la mais assustada. Nós precisávamos continuar a caminhar, precisávamos voltar para casa.
 - Matt, você tem certeza de que seguir o rio é a coisa certa a fazer? Ele pode ter mais quilômetros de extensão.
 - Eu sei, mas não temos opção.
 - Temos sim, e se atravessarmos a ponte?
 - Bem, vamos lá. Não temos nada a perder mesmo.
 Mary caminhou até ela e parou na frente da placa. Tirou todas as plantas mortas e eu pude ler o que estava escrito.
 "Se você chegou até aqui, ainda pode desistir
 O caminho além do rio é cheio de dor e desespero
 Depois de começado, o caminho só será terminado no fim da missão
 Seguir em frente ou definhar
 Você pode ser bastante esperto para apenas passar
 De volta para o seu doce lar
 Mas se não for forte o bastante, a curiosidade o matará
 O que haveria te ter ali?
 Uma vez recusado,
 O caminho nunca mais será lembrado
 Caro forasteiro, não diga que você não foi avisado"
 - Um enigma. - Mary disse e passou a mão pelo queixo.
 - Isso não me parece um enigma, me parece um aviso.
 - Ele está manipulando você. Genial. Ele quer que atravessemos o rio. Aposto que vamos encontrar o caminho de volta se atravessarmos o rio.
 - Mary, você leu a parte do "O caminho além do rio é cheio de dor e desespero"?
 - Sim, esse vai ser o caminho apenas para os corajosos, leia-o com cuidado novamente.
 E então o li novamente.
 - Matt, a curiosidade é uma arma mortal, apesar de parecer tão inocente. Aqueles que seguirem em frente, seguir o rio depois de ler isso, são aqueles que se considerarão fortes, e você é forte o suficiente para passar o resto da sua vida pensando no que poderia ter acontecido, ainda mais se o caminho seguindo o rio não for o certo?
 - Bem, não. - respondi sinceramente. - Mas e toda a parte de dor e desespero?
 - O arco-íris vem apenas depois da chuva, ele nunca aparece antes ou sem ela. Nada é tão fácil assim, às vezes o caminho mais rápido é aquele que parece ter apenas o sol brilhando, mas sol em excesso pode te matar.
 - Você anda filosofando demais, sabia?
 - Culpa dos livros que ando lendo desde os meus dez anos. - ela disse e riu.
 - Então dor e desespero, ai vamos nós.

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